A viagem - C S Lewis, 1945
No fim de contas, só há dois tipos de pessoas: aquelas que dizem a Deus «faça-se a Vossa vontade», e aquelas a quem Deus acaba por dizer «faça-se a vossa vontade».
(in LEWIS, C. S., A Viagem)
O livro a ser sugerido esta semana chama-se “A Viagem” (The Great Divorce), publicado em 1945 por Clive Staples Lewis. Trata-se de um conto visionário de natureza semelhante a outros clássicos, como a Divina Commedia, de Dante, ou o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. A obra insere-se num conjunto mais alargado de literatura apologética, onde o professor de Oxford procura tornar credível a fé na vida eterna. Amigo de Tolkien, converte-se ao cristianismo por influência deste.
A obra tem início numa cidade cinzenta e sem beleza, na qual o personagem vagueia debaixo de chuva, por ruas de comprimento indeterminável e sempre crescente, iluminadas pelo crepúsculo do ocaso que parece não ter fim. Na paragem do autocarro, algumas pessoas esperam o autocarro que as levará ao Vale da Sombra da Vida, e muitas vão desistindo de esperar.
A matiz da obra é sobretudo moral, revelando-se logo desde o prefácio, onde Lewis observa que para entrar no Céu não se podem guardar «nem sequer os mais pequenos e íntimos souvenirs do inferno».
Qualquer Homem que alcance o Céu descobrirá que o que foi abandonado não foi perdido: o núcleo do que ele realmente procurava, mesmo nos seus desejos mais depravados, estará lá, acima das expectativas.
Lewis vai mais longe, e aproveita o conto para criticar o espiritualismo desencarnado que se opõe ao cristianismo. À medida que o personagem se aproxima do Céu, também os diversos objectos que encontra se apresentam materialmente mais “reais”, por oposição aos da cidade que são “fantasmagóricos”. Os próprios personagens apresentam esta qualidade.
[Os passageiros eram] manchas com forma de Homens. […] a erva não se dobrava sobre os seus pés: nem as gotas de orvalho eram perturbadas. […] Os Homens eram como sempre foram […]; a luz, a erva, as árvores, é que eram diferentes: feitas de alguma substância diferente, muito mais sólida que as coisas no nosso país, que os Homens eram fantasmas por comparação.
No Vale da Sombra da Vida, o personagem vai contactando com outros que progressivamente, e cada um a seu modo, vão rejeitando a estadia naquele lugar e regressam ao autocarro. Cada encontro é explicado por um guia angelical, uma Pessoa Sólida, que acompanha o personagem. Quase todos voltam para a cidade porque são mais afectos às coisas da vida presente do que a Deus. Aos que aceitam entrar no Céu, Lewis tenta descrever o estado de glória que alcançam, explicando que
«se tornavam mais sólidos, o braço e o ombro de um homem. […] mais brilhantes e mais fortes, as pernas e as mãos. O pescoço e a cabeça dourada materializaram-se, […] um homem realmente a completar-se, [porque] a Natureza ou Arquinatureza daquela terra rejubilava por ter sido mais uma vez dominada, e portanto consumada».
Em suma, A Viagem narra o itinerário através do qual o personagem principal é levado, em sonho, a visitar o inferno, o purgatório e o Céu. Ao longo do texto vamos encontrando muitos outros personagens sobre os quais Lewis mostra o porquê de entrarem ou não no Céu.
Mais do que descrever com detalhe as realidades celestes ou infernais, ideia que repugnava a Lewis, o autor procura mostrar como é impossível um casamento entre estas duas instâncias. O próprio título deriva da crítica feita à obra de William Blake, The Marriage of Heaven and Hell. Ao mesmo tempo, Lewis tenta descrever a relação entre o estado actual do homem e a sua glória futura, justificando a tese por ele apresentada um ano antes no ensaio filosófico Transposition. Contudo, podemos encontrar muitos traços da literatura bíblica também aqui presentes, sobretudo da imagética apocalíptica.
Ao longo da obra vamos ainda encontrando outros temas como o exercício ascético, a maternidade espiritual ou a retroactividade do bem e do mal e a doutrina do refrigerium.
C. S. Lewis (1948)
(Este artigo foi escrito com a colaboração de Diogo M. Machado)
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